sábado, 20 de setembro de 2008

Entrevista com Sylvio Back

Publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais, 2001.

Anelito de Oliveira – Como você avalia a recepção tão fria que "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro" teve no Brasil?

Sylvio Back – Hoje eu sei o que é ser preto no Brasil! Ao tentar reverter a perfídia que permeia o inconsciente coletivo nacional de que Cruz e Sousa teria sido ou seria um "preto de alma branca", meu filme pegou o espectador em geral, e os afro-brasileiros em particular, de surpresa. Os que esperavam hagiografia, um "cinema de lágrimas", um cinema com "negro subserviente", defrontaram-se com um anti-clímax. Isso bastou para "desinteressar", à distância, intuitivamente, parte da mídia e o grande público. O contraste fica por conta da bela fortuna crítica que o filme coleciona. Mas, a bem da verdade, para evitar uma generalização despropositada, em várias sessões especiais dezenas de brancos, negros e mestiços se encantaram, aplaudindo-o de pé com os olhos marejados. Infelizmente, uma ínfima minoria que não se reproduziu quando ele entrou em cartaz. Como resposta – o que venho testemunhando nesses meses de seu lançamento nacional "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro" acabou (e continua) sendo alvo de um surdo e absurdo boicote, eufemismo que encontrei para definir um preconceito racial, literário e ideológico tão forte quanto o que estigmatizou o poeta em vida e post-mortem. É um filme incômodo porque a sua linguagem incomoda, porque o pré-e-pós onírico da poesia perturbam. Incomodam a platéia acomodada, constrangem e até "ofendem" os cinéfilos viciados no já-visto e digerido.

Oliveira – Que fatores ou fator, enfim, teriam determinado essa reação tão ambígua?

Back – A questão toda, a meu ver, centraliza-se no discurso poético antinaturalista de "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro" e, sem sombra de dúvida, de como é transmitida a inexcedível amperagem moral da palavra do poeta. Cem anos depois, através do celulóide, ele que adoeceu e morreu quando o cinema brasileiro nascia, Cruz e Sousa é vítima de seus poemas, de sua biografia, é ferido pelas mesmas e vis inveja e discriminação. Era imperdoável pela genialidade, pela ousadia, pelo erotismo, pela poesia que nunca antes ninguém escrevera no país. Segue imperdoável um século depois. E isso se transferiu para o filme. Era quase óbvio que o racismo cordial do brasileiro branquela fosse esnobar a sua cinebiografia, agastado pela radicalidade da narrativa, com o revelar de um poeta único e mediúnico. Não era óbvio que os afro-brasileiros também sucumbissem a reconhecer e absorver as contradições do seu mais forte e vilipendiado ícone. Mas é assim: não interessa um libelo em forma de poema, não interessa cavoucar o inferno da construção da nacionalidade, não interessa olhar-se no espelho da desigualdade e do horror, não interessa um homem igual a todos os homens. A "culpa" é do filme: diálogos em forma de estrofes, o dilema da africanidade do poeta,s interpretações teatralizantes, a descontinuidade episódica, estrutura dramática órfã de emoções baratas, a eleição do verbo e do ethos cortantes – sem mais. No lugar, apenas a imensa e irresgatável dor moral do ser-negro, aquela que se prefere escamotear e deixar como está pra ver como fica. Cruz e Sousa nunca deveria ter existido. "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro", um filme que não deveria ter sido feito.

Oliveira – Como se dá a estrutura interna do filme utilizando "apenas" os próprios versos e prosa do poeta, ao invés de um roteiro convencional?

Back – Tudo tem a ver como os poemas, textos e cartas fruem e se fazem voz, epiderme, movimento, tato e "olfato" fotográficos, através da linguagem desviante encontrada para o filme. Uma linguagem a contrapelo do cinema clonado de Hollywood e das telenovelas. Entre tantas vertentes que poderiam explicar esse "exílio" do público e de uma certa mídia há uma, porém, onde – penso – reside a chave da incompreensão para o jogo de claros-e-escuros de sua fatura seca e alegórica. Ainda que o passado esteja ali, cronologizado, afinal estamos (será?) nos fins do século XIX, a "estória", narrada de forma tortuosa e elíptica, os cenários, a luz e os personagens se embaralham o tempo todo. E o espectador freqüentemente não consegue enxergar que o filme está na palavra e não numa eventual trama de vivências e ocorrências. A desmetaforização dá-se através da visibilidade pura e simples, que é a própria definição do cinema. Tudo o que é pensado no roteiro tem que se materializar defronte à câmara, mesmo que permaneça invisível. No entanto, em "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro" esse deslocamento ocorre exatamente na formatação dos ambientes (naturais e construídos) e na roupagem que passam ao largo do verismo histórico, para "existirem" na dramatização dos poemas. É a palavra que reina. É a transmutação da poesia em personagem. De versos e estrofes fazendo-se passar por diálogo (quase à moda dos filmes calcados em Shakespeare e dos musicais, mas sem música, apenas com a "orquestração" dos voleios verbais, das inusitadas aliterações – a memória do tantã d'África, dos fonemas e rimas riquíssimos do poeta). Os dados, para não dizer "dardos", estavam lançados. No montar a ilustração cênica e sonora que injetaria de pulsão própria os poemas e no ouvir e ensaiar com os atores – fui orquestrando nas próprias locações a linguagem de um filme que eu nunca havia visto ou feito antes.

Oliveira – Você diria que o filme mostra nossa brasileira dificuldade de ouvir ou uma dificuldade de ouvir especialmente Cruz e Sousa?

Back – Desde o próprio Cruz e Sousa, nenhum dos demais personagens centrais do filme é o protótipo do negro "coitadinho", satanizado pela sociedade branca, pela história oficial. Esse corte epistemológico sobre o que até hoje se convencionou ser o retrato acabado do negro brasileiro provocou uma recusa quase incontornável. Mesmo do espectador dito culto, ele também catecúmeno da chamada "linguagem universal". Porque nenhuma cena, cenário ou figurino reforça a idéia excludente do "negro que sabe o seu lugar". Cruz e Sousa não sabia o seu lugar porque a poesia é a seara do ostracismo da palavra. Meu filme não sabe qual é o seu lugar, É um approach, digamos, ao revés – na ilusão de poder capturar o criador na criatura. Aí está a diferença dele, dos personagens, de Cruz e Sousa, dos atores – atores negros protagonistas num país onde são sempre secundários, vilões, almas heróicas e sofridas, paternalizados, sem pátria, sem futuro, sem história. A sensação de estatura moral do negro torna-se irremediavelmente absoluta no filme. E para quem o assistiu sabe que doravante não se livrará mais da africanidade incandescente e inapagável do maior poeta negro da língua portuguesa. Mas ao mesmo tempo ficará intrigado: será que a cultura "chapa branca" (mesmo aquela vinda das camadas mais humildes jamais é inocente) não o engessou numa homenagem às avessas da escola de samba que o cerca nos derradeiros fotogramas do filme? Ou será que Cruz e Sousa, ou melhor, o ator negro Kadu Carneiro, ao abrir um enorme sorriso para a platéia, não está se vingando dos racistas e sósias étnicos deles, tão algozes quanto no tempo e no espaço? Ou ainda, será que não ficamos todos, inclusive o filme, aquém da compreensão holística do que é ser preto no Brasil?

Mostra de Cinema da Semana Ousada de Artes UFSC-UDESC

25/09, às 14h: “Cruz e Sousa, o poeta do Desterro”, de Sylvio Back
Local: Auditório da Reitoria - UFSC

Sinopse: Biografia do poeta brasileiro, filho de escravos, João da Cruz e Sousa (1861-1898), fundador do Simbolismo no Brasil e considerado o maior po­eta negro da língua portuguesa. Através de trinta e quatro "estrofes visuais", o filme rastreia desde as arrebatadoras paixões do poeta na então Nossa Senhora do Desterro (hoje, Florianópolis (SC)), ao seu emparedamento social, racial e intelectual e trágico fim no Rio de Ja­neiro.

16h
Debate com o diretor Sylvio Back
Local: Auditório da Reitoria - UFSC

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