quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Entrevista com José Rafael, por Eduardo Socha e Thiago Momm Pereira

Como é que você conheceu o engenho?
Foi completamente por acaso. Fui convidado por um grande amigo, que me disse: “Ouvi falar de um engenho de cana movido a boi, tem um alambique que faz cachaça lá no meio do mato, no Sertão...” Era 1992 e eu tava no meio da faculdade de cinema da ECA-USP, em São Paulo. Tinha 19 anos e não conhecia o Sertão. Então tu sai de casa e sobe um morro inteiro a pé, andando por uma trilha ancestral, até chegar mais adiante num pasto lindo, aberto, silencioso. Só os quero-queros... E na descida descobre, escondido, o engenho. E lá encontra duas pessoas vivendo de um modo remoto e te vem a intuição de que são pessoas importantes – seo Chico morava, na época, com dona Alaíde, ajudante da casa. Eles pareciam casados, mas na verdade não eram.

E como se deu esse primeiro encontro?
Eles te abrem a porta pra você entrar. Aí tu entras e enxergas aquele mundo fascinante, aquelas máquinas fabulosas – um engenho de farinha, uma moenda, uma prensa. Você se sente atraído pelo lugar, pelas pessoas, tem que registrar aquilo. Alguém tem. Logo eu já estava voltando com uma máquina fotográfica. Aquilo pra mim era um retiro no meio da cidade. Você ia pelo passeio, mas o propósito era maior: o encontro, a conversa, a aprendizagem, e aquele estado suspenso da psique que a pinga te proporcionava...

Qual era a produção e o mercado da cachaça do seo Chico? Isso garantia a subsistência dele?
A produção dele era algo entre 50 e 100 litros por semana, e as garrafas eram vendidas a 3 reais o litro. O mercado era a vizinhança, mas ia lá gente de tudo quanto é lugar pra comprar. Era basicamente este o ganho dele. A subsistência dele era garantida também pela criação de gado.

A família dele já tinha essa estabilidade?
No levantamento feito com a população do Sertão em 1974-75, está anotado que a família do Tomás Martins dos Santos é responsável pela maior produção de farinha da região. Eram agricultores, mas não só de subsistência: o excedente era comercializado nos arredores do Sertão e em todo o sul da Ilha. Principalmente a farinha mas também açúcar, cachaça, laranja, banana, feijão etc. Com a crise desse modo de vida eles não têm mais escoamento pra essa produção, competindo com as indústrias de farinha e também com a cachaça de fora, mais barata.

Uma coisa que não fica bem clara no filme era o contato do seo Chico com a comunidade. Ele não saía, não sociabilizava?
Saía pra vender a cachaça, comprar mantimentos, visitar os amigos às vezes no Sertão, no Ribeirão. Mas o filme se detém ao cotidiano dele no engenho. Aliás, o lugar era aberto a visitas o tempo todo. Claro que a afluência de pessoas variava, dependia do dia da semana e da condição da estrada, em caso de chuva. Mas sempre existia a possibilidade de alguém chegar.

Quando você começou a filmá-lo?
Assim que a sinhá Alaíde morre, em janeiro de 1995, eu me preocupo em filmá-lo em vídeo, mas sempre de forma amadora. Ia lá pra ajudar seo Chico nas tarefas dele e levava máquina fotográfica e câmera de vídeo. Assim, desse processo de convívio, amizade e documentação despretensiosa, vai surgindo meu interesse em realizar um documentário em curta-metragem.

A verba pra esse curta, como você conseguiu?
Os recursos pra filmarmos foram captados junto ao BESC, com o incentivo da Lei Rouanet, num projeto amplo de apoio ao cinema catarinense em 1996. Naquele ano o banco apoiou vários projetos: o “Ponte Hercílio Luz”, do Zeca Pires, o “Victor Meirelles”, do Penna Filho, entre outros. Assim também foi com o apoio ao “Vida e Obra de Seo Chico”, que era o título do meu documentário. O aporte do BESC foi de R$ 20 mil, mas o orçamento era de R$ 90 mil. Pois com este aporte parcial dei início às pesquisas técnicas e à pré-produção e já existia a possibilidade de barateamento da filmagem em super-16mm.

Quem estava na equipe?
Na equipe principal do filme tive a honra de contar com profissionais locais de primeira grandeza, como Maria Emília de Azevedo, Charles Cesconetto, Fábio Fernandes e Orlando Baptiston, entre outros, além dos mestres da imagem Dib Lutfi e Mário Carneiro vindos do Rio de Janeiro, bem como meu ex-professor de som na ECA, parceiro inestimável, João Godoy, vindo de São Paulo.

Na primeira entrevista, aparentemente, houve um choque inicial do seo Chico de ter que falar pra câmera. Ele dirige um olhar seco, firme, inquisidor. E aquele silêncio, ao mesmo tempo desconfiado e sem constrangimento, aumenta ainda mais dramaticidade do olhar. Depois a relação fica mais solta.
Eu fiz questão de manter na montagem a cronologia da filmagem e as reticências do personagem. A primeira entrevista dele com a equipe foi mesmo aquela no alambique. Ter esse misto de abertura e confiança nos estranhos é característica do morador original da Ilha. O nativo é hospitaleiro, bom, de coração aberto, inicialmente desconfiado, ressabiado, mas franco, sempre franco. A partir do momento em que ele ganha a tua confiança e tu ganhas a confiança dele, quando tu jogas limpo, sem teatro, o laço se estabelece. O que mais me fascina é que, tendo deixado as reticências dessa abordagem, os silêncios dessa conversa, abre-se o fogo pro espectador sobre como se deu essa aproximação. Minha vontade era a de colocar o espectador na mesma condição de visitante em que nós da equipe estávamos.

Você pré-roteirizou o filme?
Trabalhei sem um roteiro rígido. Não eram as nossas atividades que pautavam seo Chico, e sim o contrário, geralmente. Logo imaginei que o filme devia transcorrer no estilo “um dia na vida” dele, com imprevistos e com o máximo de naturalidade do verbo e do pensamento livres do Chico. Então acompanhamos mais ou menos livremente as atividades diárias dele. Se ele fosse “mudar o boi”, lá íamos nós com ele.. Tentávamos estar alertas para o que fosse interessante, “dramático” para o filme, sem atrasá-lo, mas esse atraso às vezes acontecia. Tentávamos interferir o mínimo, mas nossa própria presença lá já transformava a rotina dele. Passamos a ajudá-lo em algumas das tarefas diárias dele para que ele pudesse também estar mais disponível para o filme. Além disso, havia a necessidade de registrar os processos de produção específicos: moenda de cana e alambicagem para o feitio da cachaça e a lida da farinha – a farinhada, que infelizmente não filmamos.

E você não suspeitava que às vezes estava influenciando o comportamento dele, eventualmente dizendo “seo Chico, fica mais pra lá...” e tal? Não tinha receio de perder a autenticidade do retrato?
Claro, sempre existia o risco de que estivéssemos, de uma certa forma, “ficcionalizando” o cotidiano dele. Isso aconteceu em alguns momentos. Mas já no segundo dia de filmagens, percebi que as esperas para filmar eram tão ou mais importantes que o registro principal, da câmera de cinema. Então passo a incorporar os bastidores nos registros do filme, pra isso carregando também constantemente a minha câmera de vídeo-amador. Aí, meu receio passa: “Não vamos perder nada”. Passam a co-existir os dois materiais. Nenhum é melhor que o outro, tudo está valendo.

E você aproveitou esse material dos bastidores?
Entrou bastante, até. Entrou a cena da cozinha, dele falando do “rango na roça”, a conversa com o meu pai, também filmada por mim, assim como a sequência inteira do porre e da foto do pai dele. Desse processo meio planejado e meio intuitivo surge uma respiração nova que não entra em conflito com o filme idealizado, mais parecida até com a cara que o filme deveria ter – a de uma obra em processo, mesmo. Mas, claro, boa parte destas reflexões é posterior à filmagem e à morte dele.

Em se tratando de um retrato do seo Chico e de seu cotidiano, essa decisão não excluiu traços importantes?
Tenho certeza de que o essencial está no filme. Do projeto idealizado pra ser um dia na vida de seo Chico, foi mantida a descrição das atividades fundamentais do cotidiano dele, todo o modo de produção da cachaça, da roça ao pote. Além disso, há um importante inventário de suas lembranças familiares, de seu modo de pensar, do seu humor – da sua espiritualidade, enfim. Penso que o essencial era mostrar como vivia e o que pensava este homem, bem como discutir a tragédia ocorrida com ele. Uma tragédia que transborda os limites do Sertão dos Indaiás e de Florianópolis, pra ganhar notoriedade em todo estado e provocar a comoção de toda comunidade catarinense.

Ele já era uma figura conhecida antes do filme?
Era. Seo Chico era conhecido pela comunidade toda. O pessoal todo do sul da ilha o conhecia e várias pessoas de toda a cidade freqüentavam o engenho. Mas claro, ele passa a ter esta trágica notoriedade após o assassinato.

Quando você fica sabendo que o seo Chico morreu?
Na manhã do sábado, 21 de setembro de 1996, uma irmã dele me liga e diz que ele está desaparecido. Na verdade, ele estava morto dentro do engenho. Quando cheguei lá, meio-dia, tinha umas quinze pessoas e a polícia militar também já tinha chegado. Os peritos haviam sido chamados. Ele morreu com um corte no pescoço e com tiros nas costas e nos ouvidos.

Sem a morte dele, a tua história seria menos impactante?
Talvez. Pensando no projeto original, eu imaginava já um certo impacto pela escolha do personagem, um sábio alheio à urbe, pelo que há de político e de poético nisso. Mas é difícil imaginar quais outros condicionantes estariam agindo sobre a concepção do filme. A morte se sobrepõe a tudo: uma dimensão trágica invadiu não só o filme, mas transformou meu próprio processo existencial. Algo absolutamente intraduzível. Fiquei anos sem conseguir abordar este material.

O filme não explora os motivos da morte dele. Na tela, pelo menos, você se isenta de uma investigação mais apurada.
Ninguém sabe os reais motivos da morte dele. Ao longo das filmagens tentei iluminar vários aspectos do personagem e da polêmica, mas não cabia a mim o papel da polícia. Escolhi não fazer do filme um filme investigativo, porque eu acreditava que a essência deveria ser a de homenagear seo Chico em vida. Não quis explorar, fazer sensacionalismo. Lamento informar que não tenho a verdade sobre o assassinato – tudo que eu sei está no filme. Além disso, avaliei que não devia colocar informações que induzissem o espectador a uma sentença. Existe um acusado que está sendo julgado por um crime que ele pode ou não ter cometido. Quem sou eu pra incriminá-lo? Não posso. O que fiz foi apresentar no filme informações, fatos concretos e com o máximo de correção. Tive como base os laudos da investigação policial. São informações públicas. Mas o que permanece talvez seja a indignação com a forma pela qual o caso foi conduzido pelo poder público. Sem apontar culpados pela omissão, o fato é que a justiça, para pessoas como seo Chico, tem sido bastante lenta e omissa.

Mudando de assunto, eu queria que você falasse da trilha-sonora.
O tema principal do filme é composto pelo meu compadre Chico Saraiva, violonista de mão cheia. Estudamos juntos por toda a adolescência, sempre mantivemos uma estreita amizade. Sabendo que um dia haveria de ser feito este longa, ele concebeu o tema central deste filme. Chama-se “Primeiro de Janeiro”. É o tema da moenda, que depois volta em violão-solo no “dia seguinte”.

É um tema muito bonito.
Um tema lindo, lírico. Ele dá uma consistência ao clima emocional que eu imaginava pro filme, toda trilha tem uma cadência discreta mas sempre emotiva. Sei que hoje há certa unanimidade na crítica quanto ao uso da música em documentários: há uma espécie de doutrina que desestimula e até condena o uso de música: você não deve usá-la porque isso direcionaria demais a emoção do espectador, e o espectador deve ter sua própria leitura. Como se a função do autor não fosse exatamente a de saber dosar as medidas em que cada um dos elementos deve interagir para alcançar um efeito dramático. O mesmo acontece neste filme pela falta de música: há longas seqüências sem música – propositalmente pesadas. Fala-se do não-uso da música como uma forma de purismo. Mas várias músicas me acompanharam durante o processo todo, de concepção e convivência com o filme... Temas que eu tinha certeza de que tinham ligação direta com esta vivência. Um deles, especialmente, deliberadamente e propositalmente foi mantido e anuncia a abertura do filme. É “Seis horas da tarde” do Milton Nascimento.

Nessa abertura, o olhar do seo Chico é muito penetrante. Ele tem uma expressão que cativa. E aquele olho fala muito. Revela bastante coisa da personalidade dele.
Sabe qual é a matriz daquele olho? Aquele era um teste de câmera no engenho do Chico antes da filmagem principal, mas já com película de cinema. A gente estava testando a luz daquela penumbra, aqueles contrastes interior-exterior com as diferentes emulsões. E com seo Chico parado na porta em frente à moenda. O Dib Lutfi, ao terminar o plano, fecha o zoom no olho direito dele e logo desliga a câmera. Restaram do olho apenas 46 fotogramas úteis. Nós retrabalhamos digitalmente, fazendo um loop e alterando gradualmente a velocidade da imagem pra criar novos movimentos até voltar a revelar o rosto, agora em zoom out.

As pessoas têm, hoje, uma carga audiovisual muito forte. É um público já acostumado à estética do corte rápido, de tipo publicitário, televisivo, e que diz “por favor, me entretenha, me dê uma história sem planos longos, sem digressões, etc.”. Numa cena como essa, você quebra essa regra.
Aí está. São escolhas criativas. A forma que eu escolhi para articular micro e macro estruturalmente o filme é a que eu julgava necessária a partir dos elementos que eu tinha nas mãos. Está tudo integrado: forma, conteúdo e sentimentos. Partindo de elementos mínimos.

Uma curiosidade: o BESC foi um dos patrocinadores do filme. Isso tem alguma relação com o fato de que o seo Chico aparece constantemente com o boné do banco?
No dia que chegamos lá pra filmar, ele estava usando um boné do BESC. Eu nunca visto ele com aquele boné. É a logomarca antiga do banco, um boné velho. Então pensei: “o BESC está financiando o filme, bem que eu podia incorporar esse acaso do destino...” E deixei. Assim que ele morre, eu olhava pras filmagens e só via o boné. Confesso que nunca me arrependi tanto. Fica plasmado na imagem dele pra sempre. Então seo Chico em cinema está eternizado praticamente só com o boné do BESC. Mas, com o passar dos anos, aceita-se o inelutável e eu hoje não me arrependo. E nem vejo tanto mais como um demérito, uma vez que o BESC é um banco importantíssimo pro estado de Santa Catarina. Há uma confiança da população no banco, que reflete numa questão de auto-estima catarinense também. Esse não é um discurso chapa-branca, não. Mas enfim, do ponto de vista da direção de arte foi um descuido. E diga-se de passagem: quase nem se parece com os merchandisings abomináveis do que se usou chamar “cinema de investidor” feito no Brasil nas últimas décadas.

O filme foi produzido com recursos de um edital público estadual, o Prêmio Cinemateca Catarinense/Fundação Catarinense de Cultura. Pelo edital, você tinha que entregar o filme em...
...Um ano, prazo prorrogável por mais seis meses. Houve uma inquietação que começou a partir do momento em que eu não entrego o filme. Meu argumento principal era que o prazo foi muito curto. E era mesmo, todos concordam. Justifiquei isso pra comissão que acompanha os editais. Eu devia entregar o filme em outubro de 2003 e entreguei em outubro de 2004. O fato é que o fui às instâncias responsáveis do Governo do Estado para buscar que se acertasse um novo prazo e consegui, pelas vias legais. O prazo médio pra realização de um longa no Brasil é dois anos e meio. E foi exatamente este tempo que levou para o meu filme ser concluído.

Mas o fato de já ter parte do material filmado não deveria acelerar o processo?
Em tese. Acontece que esta foi uma escolha efetuada, posteriormente, ao longo da montagem. Minha responsabilidade como diretor deste projeto foi aprofundar o conhecimento de uma determinada realidade. E foi o que eu fiz: fizemos uma pesquisa extensa, fomos ao Sertão, ao Ribeirão, captamos o depoimento de uma série de pessoas, além de grande parte dos familiares de seo Chico. Duas etapas de filmagem em épocas diferentes, com transcrição completa e montagem entre as etapas. Uma quantidade monumental de material filmado que levou bastante tempo para ser organizado. No momento em que estabeleço uma estrutura-mestre para o filme, fica claro que o peso emocional principal deve caber ao material com ele vivo. O material pós-morte, as entrevistas, eram interessantes, profundas, mas só se encaixariam dentro de outra estrutura. Eram relatos plurais, fortes, interessantíssimos, mas eram discursos autônomos. Incorporar todos os personagens tornaria este filme longo demais para ser exibido nos cinemas. Daí a idéia de concentrar a narrativa na convivência com seo Chico vivo, em um núcleo emocional e estilístico sólido, unificado. Mesmo no pós-morte. Nessas escolhas não pesaram as cobranças externas – eu me cobrava mais do qualquer um ao longo da realização do filme.

Qual a responsabilidade implícita e explícita de ganhar o edital de 2001?
Meu compromisso com o Governo do Estado é o de entregar o filme. Minha responsabilidade era a de fazer um filme de qualidade, digno e honesto com meus princípios e com o legado que me foi confiado por seo Chico. Mas guardo comigo uma responsabilidade íntima, que é a de contribuir para a construção de uma cinematografia local, por se tratar de um prêmio catarinense, aliado a um fundamental resgate de um personagem singular, à margem da história oficial. Do ponto de vista econômico, não existe nenhuma cobrança quanto ao desempenho do filme, mas estamos trabalhando para que ele seja veiculado da melhor maneira, valorizando a qualidade desta exibição ao público.

Nas exibições-teste, o que você tem ouvido?
Basicamente, coisas boas. Percebi que o filme realmente emociona. Deixou algumas pessoas com lágrimas nos olhos, tanto amigos como pessoas menos próximas. Isso pra mim é uma novidade, entende? Depois de tanto tempo trabalhando quieto e solitariamente, tocar efetivamente o público é algo realmente gratificante.

E até que ponto você acha que este filme é um retrato da ilha?
No sentido em que você tem neste filme um retrato de um dos habitantes emblemáticos da ilha, é um documento raro e singular por si só. Ao ter escolhido retratar um personagem com sua complexidade, em seu habitat, creio ter criado um retrato muito simples, mas bastante fiel à essência deste personagem. Mesmo que seo Chico seja hoje um personagem extinto, ele evoca um sentimento de nostalgia muito particular. E por projeção afetiva uma elevação da auto-estima dos habitantes locais em verem um homem simples alçado à importância que sempre devia ter tido... Mas trata-se ao mesmo tempo de um retrato muito particular – em parte idílico, depois radicalmente pessoal da minha parte. O fato é que a escolha deste personagem partiu de uma paixão e creio ter conseguido transmití-la no filme. Agora: o discurso de seo Chico e do seu drama de vida, todos poderão ver, são universais.

[entrevista fornecida pelo diretor]

“Uma experiência radicalmente pessoal”, por José Rafael Mamigonian

Dos encontros casuais com Seo Chico – como mero freguês da sua cachaça – foi se construindo uma relação de confiança e amizade entre nós que evoluiu para a missão de documentar este ser humano, seu modo de vida e sua história.

No começo, eram apenas registros fotográficos do engenho, aprendendo a lidar com sua luz muito especial. Nos altos contrastes dos exteriores, na contra-luz e na penumbra dos interiores, nas texturas e nos relevos daquela paisagem d’alma fui educando meu olhar. Cada nova visita ao engenho era uma oportunidade de melhor compreender o mundo de Seo Chico e de sedimentar a certeza de sua singular importância.

Depois de dois anos tomei coragem para começar a filmá-lo. Primeiro com equipamento de vídeo amador, em registros que serviram de material-base para o registro “profissional”. Adotava um método absolutamente intuitivo de apreensão da realidade: muito antes de compreender aquela história, eu precisava simplesmente filmar. Para poder “guardar”: ver e rever. Aprender como este olhar e este tempo se traduziriam.

Ele, por sua vez, mostrou uma disposição imediata em aceitar meu interesse. Percebia minha sinceridade crescente e aproveitava as oportunidades que tinha para deixar o seu “recado” sempre bem registrado. Para captar melhor cada um desses instantes, a câmera passou a ser um instrumento constante no acompanhamento das minhas tarefas diárias com ele. Ela precisava estar imediatamente à mão, para guardar os momentos que simplesmente não se repetiriam.

Da vontade de eternizar “melhor” Seo Chico, dessa vez em um filme documentário, nasceu o projeto original do que veio a se tornar “Seo Chico, um retrato”. Graças a um patrocínio inicial do Banco do Estado de Santa Catarina pude engajar uma equipe profissional para filmarmos, como extensão de uma abordagem que eu vinha desenvolvendo de forma absolutamente amadora.

Estávamos no outono de 1996 quando demos início à produção. A cargo das imagens do filme, tive a honra de poder contar com dois mestres absolutos do cinema brasileiro, dispensando apresentações: Mário Carneiro e Dib Lutfi. Para o som, convidei o também documentarista João Godoy. Pude também contar com o inestimável apoio de vários profissionais locais: o fotógrafo Charles Cesconetto assessorou e executou toda a elaborada iluminação de Mário Carneiro; Maria Emília de Azevedo assumiu impecavelmente a direção de produção desta filmagem, Fábio Fernandes também assessorava a produção e veio a ser o principal colaborador do projeto até o seu formato atual; e Orlando Baptiston, maquinista-chefe e produtor de set, completando a equipe principal.

Elaborei um roteiro de filmagens que se sustentasse como uma série de seqüências tal qual “um dia de trabalho de Seo Chico”. Documentamos as atividades principais do seu cotidiano, acompanhando-o conforme suas tarefas naqueles dias, tentando manter a naturalidade do seu ritmo de vida. Entretanto, não havia como omitir a presença da equipe em interação com aquele cotidiano. Ao assumir o registro dos bastidores e da relação entre nós e ele, algo diferente parece emergir das conversas.

Ao final das filmagens, para mim era nítida a “dualidade” gerada por registros com características distintas: um olhar é formal, etnográfico e austero; outro é mais físico, despojado, apaixonado. O trabalho de documentação não me parecia inteiramente concluído. Continuei meus registros pessoais, documentando o que viria a ser um “momento histórico”: a chegada da rede elétrica ao engenho do Chico.

Entretanto, o processo de documentação dessa história foi completamente transformado pela trágica notícia do assassinato de Seo Chico, ocorrido três meses após aquelas filmagens.

Algo intraduzível se abateu sobre mim: a suspensão de toda e qualquer lógica. Angústia, indignação e frustração perduraram por anos. Entretanto, guardava em meu íntimo o compromisso da missão assumida ao escolher documentá-lo. Uma série de questionamentos sobre o que perduraria desta história, a ponto de torná-la ainda pertinente aliados ao sentimento íntimo da paixão renovada e da revolta pelo “não-desfecho” das investigações sobre a morte de Seo Chico, nutriram a realização deste filme.

Durante a reestruturação do projeto, a ausência de Seo Chico se impunha por completo. Ao ver e rever o material filmado infinitas vezes, solidificava-se a certeza de sua potência emocional. Graças a um edital do Governo do Estado de Santa Catarina para a produção de um longa-metragem esse filme pôde ser concebido e realizado.

Após várias pesquisas, novas etapas de filmagem, extensas entrevistas com amigos, parentes e conhecidos, optei por priorizar o vigor que emanava do material filmado com Seo Chico vivo. Escolhi também circunscrever esses momentos à etapa “profissional” das filmagens e montei eu mesmo o filme que eu conhecia como a palma da minha mão, na confiança de que somente um olhar radicalmente parcial poderia traduzir o tempo emocional necessário para traduzir a eloqüência de Seo Chico sem macular a essência de sua alma.

“Seo Chico, um retrato” (2005), de José Rafael Mamigonian

Sinopse: O lavrador Francisco Thomaz dos Santos era personagem vivo da história quase extinta dos engenhos de farinha, de cana-de-açúcar e alambiques na Ilha de Santa Catarina, atual Florianópolis, no litoral sul do Brasil.

O filme é um testemunho dos encontros dele com a equipe de filmagem, buscando transparecer ao máximo a intensidade emocional dessa experiência, tragicamente interrompida.

O personagem

Bem antes de morrer, Seo Chico já era uma figura “folclórica”, singular, sendo conhecido muito além dos limites da cidade de Florianópolis.

Seu engenho era freqüentado não apenas pelos amigos e fregueses vizinhos mas por inúmeros visitantes – vindos às vezes de muito longe – que escolhiam a tranqüilidade do Sertão dos Indaiás para se religar ao modo de vida simples, ao ritmo calmo e natural dos tempos idos, comungando com Seo Chico.

Descendente direto dos antigos imigrantes açorianos que colonizaram o litoral catarinense há mais de 250 anos, ele era o herdeiro do último engenho tradicional ainda em atividade na região.

Encontrar Seo Chico nos dias de hoje equivalia a uma espécie de “viagem no tempo”. Erguido nas terras que pertenceram à sua família desde o tempo dos seus bisavós, o engenho – em atividade há aproximadamente dois séculos – ainda mantinha intacta sua estrutura arquitetônica, preservando o modo de funcionamento original, sendo movido à tração animal.

Nos últimos anos de sua vida, Seo Chico morava e trabalhava sozinho. Todos os irmãos já tinham se mudado para a cidade há mais de vinte anos e seus pais haviam falecido. Ele procurou mas não encontrou mulher pra casar que agüentasse essa “penitência”. Não teve filhos.

Vendia semanalmente a sua produção de cachaça aos fregueses da região e aos visitantes, com quem chegavam também as notícias. Não poderia ser considerado um eremita. Ao contrario. Adorava encontrar amigos e acolhia visitantes desconhecidos com o mesmo coração aberto.

Algo de singular operava quando ele se exprimia. Seo Chico falava com simplicidade e contundência o que pensava, sempre à sua maneira. Não escondia suas emoções. Dizia ter aprendido quase tudo com os “antigos”. E os louvava sempre

Este filme busca, apaixonadamente, render tributo ao seu espírito.

Equipe técnica

Concepção, produção, montagem e direção: José Rafael Mamigonian
Direção de fotografia: Mário Carneiro
Operação de câmera: Dib Lutfi
Som direto: João Godoy
Edição de Som: Eduardo Santos Mendes e João Godoy
Mixagem: Pedro Sérgio
Print-master: José Luis Sasso
Direção musical: Chico Saraiva
Músicos: André Magalhães (percussão), Chico Saraiva (violão), Gabriel Levy (acordeom) Thomas Rohrer (rabecas)
Imagens adicionais: Hélcio Alemão Nagamine e José Rafael Mamigonian
Direção de produção: Fábio Fernandes e Maria Emília de Azevedo
Iluminação: Charles Cesconetto
Produtor de set e maquinista: Orlando Baptiston
Finalização: Francisco José Mosquera e José Rafael Mamigonian

Documentário "Olhar de um Cineasta"

Com 75 minutos de duração, o documentário de longa-metragem Olhar de um Cineasta, dirigido por Cesar Cavalcanti, é um mergulho na vida e na obra do cineasta catarinense Marcos Farias. Cenas de filmes estão intercaladas com depoimentos de companheiros do Cinema Brasileiro que com ele conviveram, como, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Eduardo Coutinho, Paulo Cesar Saraceni, Sergio Sanz e outros.

A atriz Ângela Leal, que atuou em dois filmes de Farias e um deles co-produziu, fala emocionada de sua relação profissional e de amizade. Já o ator Othon Bastos descreve sua vivência com Farias. Outro que conviveu com o cineasta foi o ator e diretor Flávio Migliaccio. No documentário, ele relembra os trabalhos realizados e fala sobre a sensibilidade profissional que Farias tinha ao dirigir os atores.

Eglê Malheiros e Salim Miguel também estão no filme. Eles foram parceiros de Marcos Farias na época da Revista Sul e, mais tarde, nos filmes A Cartomante (Machado de Assis) e Fogo Morto (José Lins do Rego), onde adaptaram os roteiros. Participam do documentário a filha Patrícia e a mulher Maria Clara Borges Feigenbaum, que recordam sua relação afetiva com o cineasta.

Cesar mostra também a diversidade dos temas focados pelo cineasta. “Ele primava pela sutileza e delicadeza na narrativa, quando abordava questões sociais”, diz o documentarista. Farias estava à frente de seu tempo, “muito embora tenha sido um vigoroso operário e um grande empreendedor em tudo que realizava”, acrescenta. Ao desvendar a obra deste catarinense, Cesar mostra a importância do movimento do Cinema Novo. “É um resgate de um período do Cinema Brasileiro, que começa com o movimento Cinema Novo e vai até a década de 1980”.

Ficha técnica:

Título “Olhar de um Cineasta”
Duração 75´ (minutos)
Ano de Produção 2007
Local de origem Florianópolis – Santa Catarina
País Brasil

Direção: Cesar Cavalcanti
Direção de atores: Cesar Cavalcanti
Assistente de direção: Janete Moro
Roteiro: Janete Moro e Cesar Cavalcanti
Empresa produtora: Produtor Independente
Produtores: Janete Moro / Cesar Cavalcanti
Produção Executiva: Janete Moro
Direção de Produção: Sofia Mafalda
Assistentes de Produção: Silvio Cesar Nazário
Direção de Fotografia: Marx Vamerlatti
Operador de Câmara: Marx Vamerlatti
Câmara adicional: Leandro Elsner
Assistente de Câmara: Leandro Elsner
Eletricista: Hercules de Jesus (SC) e Wallace Silvério (RJ)
Maquinista: Hercules de Jesus
Cenografia: Fabíola Beck
Figurino: Fabíola Beck
Produção de Arte: Fabíola Beck
Montagem/Edição: Tiago Santos
Edição de Som: Tiago Santos
Mixagem: Aldo Bastos

Estúdio de Montagem/Edição: Muringa Produções Audiovisuais
Estúdio de Som: Aldo Bastos

Trilha musical original
Música, autor e intérpretes
Título “Sem fim” – Autor, Direção Musical e Som Designer: Aldo Bastos
Participações João Carlos Silva (guitarra e violão), Talita Oliveira (voz), Roberto Ugarte (Keyboards).

Elenco: Tião Braga e Carlos Henrique Silveira
Narração: Édio Nunes

Depoimentos: Alberto Salvá, Ângela Leal, Antonio Feigenbaum de Farias, Carlos Diegues, Cícero Sandroni, Eduardo Coutinho, Eglê Malheiros, Flávio Migliaccio, Herculano Farias, Isabella Cerqueira, Maria Clara Borges Feigenbaum, Miguel Borges, Nelson Pereira dos Santos, Othon Bastos, Patrícia Farias, Paulo Cesar Saraceni, Salim Miguel, Sergio Sanz e Silveira de Souza.


Sinopse: Aspectos da vida e obra do cineasta catarinense Marcos Farias recriam sua trajetória regional e nacional, utilizando-o como interlocutor para a interpretação do pensamento de uma época. Cenas de seus filmes e entrevistas com personalidades, que com ele participaram do movimento Cinema Novo, discutem a prática cinematográfica do antes e agora.

Sobre o diretor:

Nome: Cesar Cavalcanti
Nascimento: 25/10/1939, em Maceió – AL – Brasil

Filmografia: Cesar Cavalcanti ingressa no cinema em 1963 estagiando na Assistência de Direção do inédito longa-metragem “O Filho da Rua” de Mauro Monteiro, depois de alguns estágios nos Estúdios da ex-Brasil Vita Filmes, em produções dirigidas por Watson Macedo, J. Rui, Aloísio de Carvalho, Alberto Pieralisi, Vitor Lima e Mario Latini. 17 anos depois de exercer funções na área da Direção Artística, onde colaborou em mais de 25 longas-metragens e alguns curtas, passando por experiências nas áreas de Assistência de Direção, Continuidade, Montagem e Dublagem, passa a se dedicar à área da Produção em mais de 27 longas e curtas-metragens. Em 1981 é convidado pelo Governo Popular de Moçambique à colaborar com o INC - Instituto Nacional de Cinema, na formação de quadros profissionalizantes. De volta ao Brasil, no ano seguinte, dedica-se exclusivamente à Produção, participando de Projetos de curtas e longas-metragens, nas funções de Assistente de Produção, Diretor de Platô, Diretor de Produção, Desenhista de Produção e Produtor Executivo. Ainda nos anos 80, ministra e coordena Cursos de Cinema (Produção e Assistente de Direção) para a Embrafilme.
Como Assistente de Direção, colabora em filmes de longa-metragem como: "Cristo de lama" e "O Bolão" de Wilson Silva; "A Doce mulher amada" e "O Desconhecido" de Rui Santos; "Um uisque antes e um cigarro depois" de Flávio Tambellini; "Ao Rio para amar" de André Jasiewicz; "Um brasileiro chamado Rosaflor" de Geraldo Miranda; "Maneco, o Super Tio" de Flávio Migliaccio; "Amor e traição" de Pedro Camargo; “O Descarte” de Anselmo Duarte; “Memórias do medo” de Alberto Graça; “Una Rosa per tuti” de Franco Rossi; “Diamante a Gogo” de Giuliano Montaldo e “Rio dos diamantes” de Paul Stanley.
Na área da Produção, colaborou como Assistente de Produção, Diretor de Produção e Produtor Executivo em filmes de longa-metragem como: "Rio, verão e amor" de Watson Macedo; "Procura-se uma virgem" de Paulo Gil Soares; “Chico Rei” de Walter Lima Jr.; “Love Rio” de Stanley Donen; “Quilombo” de Carlos Diegues; “Cavalinho azul” de Eduardo Escorel; “Espelho de carne” de Antonio Carlos da Fontoura; “Ópera do malandro” e “Kuarup” de Ruy Guerra; "O Escorpião escarlate" de Ivan Cardoso; “Guerra de Canudos” e “Mauá, o Imperador e o Rei” de Sergio Rezende; “Cruz e Sousa, o poeta de Desterro” de Sylvio Back; “Villa Lobos, uma vida de paixão” de Zelito Viana e “O homem mau dorme bem” de Geraldo Moraes.
Como Produtor Cinematográfico, realiza em 1999, em co-produção com a Prefeitura de Saint-Etienne-Fr e a Produtora Publytape - RJ, o documentário de média-metragem “Carnaval D’ete de Saint-Etienne”, dirigido por José Frazão.

Em 2000 ministra Oficinas de Produção nas áreas de Cinema e Vídeo, em Festivais, Faculdades catarinenses e desenvolve projetos autorais de curtas-metragens:

1 – Dirigiu e produziu: em 2005 o documentário “Além do Samba, a Resistência Afro-brasileira” em dois formatos, curta e média-metragem, premiado no Edital n° 1 do Concurso da Secretaria do Audiovisual 2004, do Ministério da Cultural e em fase de distribuição/exibição;
2 – Em 2006/07 dirige e produz o documentário ficcionado de média-metragem, “Lurdinha, a vendedora de ilusões”;
3 – Em 2007 dirige e produz o documentário de longa-metragem “Olhar de um Cineasta” aprovado pelo Sistema Estadual de Incentivo a Cultura de Santa Catarina (Lei do ICMS), em fase de distribuição.

Em fase de captação de recursos pela Lei Rouanet, o projeto de curta-metragem “Nevoeiro”, adaptação do conto homônimo de Herculano Farias.

"Paisagem Urbana", de Pedro MC

O filme "Paisagem Urbana" faz parte da Mostra de Cinema da Semana Ousada de Artes. Ele será exibido no dia 25/09, às 10h30, no Auditório da Reitoria da UFSC.

Sinopse: Um documentário que recorta um olhar sobre o centro da Ilha de Santa Catarina, Florianópolis, lançando sobre o patrimônio sociocultural outras paisagens, rastros urbanos invisíveis, vestígios de memórias transformadas pelo crescimento da cidade. Um mosaico de memórias na subjetiva de um flanador, sentindo o espaço urbano como um palimpsesto.

Ficha Técnica:

Direção: Pedro MC
Produção: Karen C. Rechia
Montagem: Yannet Briggiler
Edição de Som: Rodrigo Amboni
Narração: Monica Siedler
Fotografia: Pedro MC
Still: Rafael Garcia Motta
Roteiro: Victor da Rosa e Pedro MC
Trilha Sonora Original: Diogo de Haro e Franco Camusso
Inspirado nas narrativas de Rodrigo de Haro, Raul Caldas Fº e Dennis Radünz

Realização:
II Edital Armando Carrerão
FUNCINE Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis
Apoio Cinemateca Catarinense – ABD-SC
Produção Cizânia Filmes
Duração 16’